segunda-feira, 14 de junho de 2010

TODO MUNDO VACILA

Em um ou outro momento, vacilamos. Claro que quando vacilamos com alguém não somos tão duros como quando vacilam conosco. É a regra. Quase sempre nós, humanos, nos achamos muito mais do que somos.
O apóstolo Paulo se achava. Antes de se converter no caminho de Damasco, era zeloso (furioso, também) perseguidor de cristãos. Consentiu na morte de Estêvão (At 8.1a). Barbarizou Jerusalém.
“Saulo, porém, assolava a igreja, entrando pelas casas; e, arrastando homens e mulheres, encerrava-os no cárcere” (At 8.3).
William Barclay, comentarista das Escrituras, afirma que “A palavra utilizada no grego (traduzida por assolar – NdaR) denota uma crueldade brutal e sádica. Aplica-se a um javali que destroça um vinhedo onde entra e a uma fera sanguinária que se atira a uma presa”.
Paulo empenhava-se em tudo o que fazia. Assim como foi implacável perseguidor dos cristãos, convertido, ninguém se desdobrou com tanto entusiasmo para proclamar o Evangelho.
No começo, os líderes cristãos em Damasco ficaram desconfiados com o antigo algoz. Os judeus, por sua vez, percebendo que Paulo já não estava mais com eles, resolveram dar um fim no antigo aliado. Dentro de um cesto, Paulo caiu fora de Damasco, auxiliado por discípulos. Chegou a Jerusalém e, novamente, enfrentou a desconfiança dos cristãos. Não estavam errados, Paulo aprontara demais.
“Mas Barnabé, tomando-o consigo, levou-o aos apóstolos; e contou-lhes como ele vira o Senhor no caminho, e que este lhe falara, e como em Damasco pregara ousadamente em nome de Jesus” (At 9.27).
Barnabé e Paulo eram grandes servos de Deus. Tinham qualidades e defeitos. Paulo era ardoroso, impulsivo, não aceitava bem a quebra de compromissos. Vamos lá: não aturava vacilões.
Barnabé era humilde, amoroso, compreensivo. Entendia que homens e mulheres erravam. Sabia que todo mundo, uma vez ou outra, vacilava.

JOÃO MARCOS, O VACILÃO
João Marcos era de família cristã. Como lemos em Atos 12.12, a igreja de Jerusalém se reunia em sua casa. Não há por que duvidar de seu caráter. Parece que era cristão sincero e trabalhador. Se assim não fosse, Barnabé e Paulo não o teriam levado em dura viagem (At 12.25).
O capítulo 13 de Atos encontra Barnabé liderando o grupo de cristãos na viagem missionária que empreendiam por ordem do Espírito Santo. Depois do episódio com Elimas, o falso profeta que procurou se assegurar dos favores de Sergio Paulo, governador na Ilha de Chipre (At 13.4-12), Paulo passa a liderar o grupo.
Barnabé não demonstra aborrecimento com o fato. João Marcos, no entanto, resolve voltar a Jerusalém. O motivo para sua decisão jamais se saberá. Os comentaristas especulam:
• Voltou porque o primo Barnabé perdeu o comando. Tomou as dores do primo que tinha mais tempo de serviço do que Paulo. Aliás, enquanto Barnabé evangelizava, Paulo aterrorizava. Barnabé até fiador de Paulo foi. E já naquela época esse negócio de ser fiador era furada.
• Voltou porque percebeu que a viagem seria mais dura do que imaginava. Era garoto, tinha muita coisa para fazer. A vida se descortinava à sua frente. Será que aquela menina iria esperar que voltasse? Dava para ficar dirigindo os cultos e evangelizando na vizinhança.
• Voltou porque, de repente, sentiu a maior saudade da mamãe, dos amigos, da namoradinha. Paulo era chato demais, cheio de exigências. Não pode isso, não pode aquilo. Voltou mesmo, e daí?
• Voltou porque era adolescente e, afinal, quem sabe o que se passa na cabeça de um adolescente?
Paulo anotou o vacilo em seu caderninho e mais tarde cobrou.

NEM TODO MUNDO DÁ CHANCE PRO VACILÃO
A viagem foi dura, mas houve bons momentos. Paulo, pregando em Antioquia, arrebentou. Começou o sermão cheio de moral: “Varões israelitas e vós outros que também temeis a Deus, ouvi” (At 13.16). Isso depois de levantar-se e, com a mão, pedir silêncio. O povo gostou tanto do que ouviu que pediu que voltassem no sábado seguinte. Mensagem boa prescinde de marketing vazio. Um sábado depois, “afluiu quase toda a cidade para ouvir a palavra de Deus” (At 13.44).
Sucesso gera inveja. Alguns judeus se impressionaram com Paulo, a maioria, no entanto, se sentiu incomodada com a mobilização gerada pelos cristãos. Paulo foi interpelado enquanto falava ao povo. Os que o interpelaram blasfemaram e puseram em dúvida o que o apóstolo dizia. Em resumo: tumultuaram o ambiente. Tanto incomodaram que Paulo e Barnabé, intrepidamente, disseram: “Era necessário anunciar primeiro a vocês a palavra de Deus; uma vez que a rejeitam e não se julgam dignos da vida eterna, agora nos voltamos para os gentios. Pois assim o Senhor nos ordenou: ‘Eu fiz de você luz para os gentios, para que você leve a salvação até aos confins da terra” (At 13.46,47).
A partir daí, Paulo lança-se à pregação do Evangelho aos não-judeus, mas esta é outra história. Voltemos a João Marcos.
Em Icônio, a mensagem do Evangelho pregada por Paulo e Barnabé causou inquietação. Uns creram, outros não. Judeus e gentios que não creram partiram para a ignorância. Paulo e Barnabé, para sobreviverem, fugiram para Listra e depois, Derbe. Em Listra foram confundidos com deuses e Paulo quase foi morto. No seguimento da viagem, fizeram muitos discípulos e ainda fortaleceram, no retorno, aqueles que haviam aceitado o Evangelho quando passaram por ali um tempo antes.
Depois de discutirem e avaliarem tudo o que rolou na viagem, Paulo e Barnabé, que haviam, inclusive, participado do Concílio em Jerusalém (leia todo o capítulo 15 de Atos para ficar esperto), resolveram que seria interessante darem uma checada no trabalho feito. É Paulo quem dá o toque em Barnabé: “Voltemos para visitar os irmãos em todas as cidades onde pregamos a palavra do Senhor, para ver como estão indo” (At 15.36).
Barnabé sugere, então, o nome de João Marcos. Paulo esperneou. O vacilão, não.
Que ninguém se atreva a acusar Barnabé de nepotismo. Ele não queria João Marcos com eles por serem parentes. Lembremo-nos que Barnabé acreditou na conversão de Paulo quando a maioria dos cristãos queria de Paulo manter distância segura. Barnabé acreditava nas pessoas. Sabia que até vacilões se redimem.
O desentendimento foi tão sério que Barnabé e Paulo não viajaram mais juntos (At 15.36-41). Barnabé levou João Marcos para Chipre. Paulo foi para a Síria com Silas.

A VOLTA POR CIMA
Depois do vacilo de João Marcos com Paulo, não se sabe muito bem o que o primo de Barnabé andou fazendo. A tradição diz que ele foi para o Egito e lá fundou uma igreja. Isso, no entanto, é especulação. Sabe-se, de fato, que João Marcos deu a volta por cima. Ou, como registra o comentarista William Barclay: “redimiu-se a si mesmo”.
É Paulo quem diz em Colossenses 4.10: “Aristarco, meu companheiro de prisão, envia-lhes saudações, bem como Marcos, primo de Barnabé. Vocês receberam instruções a respeito de Marcos, e se ele for visitá-los, recebam-no”.
Paulo era um grande homem. Exaltou-se com a pusilanimidade de João Marcos (em português tosco, frouxidão), não aceitou trabalhar com ele em um momento que julgou não ser bom, mas teve a grandeza de reconhecer que o vacilão do passado foi deixado para trás pelo garoto que se tornou um grande servo de Deus. Se não fosse assim, Paulo não o recomendaria.
Paulo fez bem mais do que isso. Em Colossenses 4.11, cita alguns de seus colaboradores, João Marcos entre eles. “Esses são os únicos da circuncisão que são meus cooperadores em favor do Reino de Deus. Eles têm sido uma fonte de ânimo para mim.”
João Marcos, antes um cara em quem não se dava para confiar, agora, fonte de ânimo. Se um dia ouvisse um elogio desses, eu chegaria às lágrimas.
João Marcos aproveitou tão bem a lição que a vida lhe ensinara que se transformou em fonte de ânimo. Alguém que ajuda o próximo a erguer-se. Um servo de Deus disposto a apoiar quem precisa.
Em 2Timóteo 4.11, Paulo refere-se novamente a João Marcos: “Só Lucas está comigo. Traga Marcos com você, porque ele me é útil para o ministério.”
Paulo está no fim da vida, cansado, e o homem que ele quer junto a Timóteo é João Marcos. Acompanhemos William Barclay: “Quando o fim está perto, o homem que Paulo quer junto a seu amado Timóteo é Marcos, porque era uma pessoa útil. Marcos, o desertor, se convertera em Marcos o homem pronto para qualquer serviço”.
Nenhum homem precisa continuar a ser o que é. Este é um título de sermão de E. Fosdick. João Marcos era fraco, tornou-se fonte de ânimo, homem útil, crente pronto para qualquer serviço por Jesus Cristo. Deixou a fraqueza para trás.

CONCLUSÃO
Há pessoas que erram, persistem no erro e parecem mesmo incorrigíveis. Um grande número delas, no entanto, só precisa de apoio. É muito mais comum agirmos como Paulo do que como agiu Barnabé. A favor de Paulo, o reconhecimento posterior das qualidades de João Marcos. Nós, provavelmente, nem isso faríamos.
Barnabé estava pronto para apoiar. João Marcos deu a volta por cima, se tornou um cristão altamente produtivo e, segundo alguns comentaristas, é ele o Marcos autor do Evangelho das páginas do Novo Testamento.
O texto não apresenta “vilões”.
Paulo é notável quando reconhece seu erro e volta a ter Marcos como precioso colaborador.
Barnabé apresenta a característica fundamental do cristão: disposição para apoiar.
João Marcos tem um momento de fraqueza, mas redime-se e demonstra que sempre é possível mudar.
Três exemplos que deveríamos nos esforçar por seguir.

(Texto baseado em sermão magistralmente pregado por Jerry Stanley Key, em um dia qualquer de 1981.)